Cena Padrão na VII Mostra Terra em Cena e na Tela - a pedagogia da opressão e sua insurgência por meio do Teatro Fórum
O professor e doutorando Pedro Ribeiro, que
atuou como curinga na sessão de Teatro Fórum que marcou a estreia do grupo,
registra o momento no texto abaixo.
A cena “Padrão”, apresentada pelo grupo Encena Kalunga, emergiu como uma potente denúncia das engrenagens de opressão reproduzidas dentro de uma instituição educacional cívico-militar, marcada por normas rígidas e pela vigilância constante dos corpos. O enredo expôs a trajetória de uma jovem quilombola Kalunga em seu primeiro dia de aula, confrontada por um conjunto de regras que age como dispositivo disciplinar e evidencia uma estrutura social enraizada em uma política de segregação baseada em aspectos raciais: o uniforme obrigatório, o controle sobre a aparência, o policiamento do cabelo crespo e volumoso de uma mulher negra e a deslegitimação de seus elementos culturais (cultura kalunga).
A
cena articulou, de modo crítico, o entrelaçamento entre racismo institucional,
elitismo e autoritarismo, evidenciando como a autoridade escolar se curva às
hierarquias sociais representadas pelos filhos de uma advogada e de um deputado
estadual, cuja denúncia direcionada à diretora reforça a lógica de que o poder
econômico opera como atalho para definir quem é ouvido e quem é punido. Nesse
embate, a estudante Kalunga e sua colega — ambas meninas negras — tornam-se
alvos da tentativa de silenciamento, culminando em uma imagem congelada de
opressão que não simboliza rendição, mas um estado limite de tensão,
resistência e desejo de mudança.
A
cena “Padrão”, de Teatro-Fórum, conduzida por Pedro Ribeiro e Rafael Villas
Bôas nos papeis de coringas, transformou a opressão ficcional em campo de ação
coletiva, abrindo espaço para que a plateia interviesse na realidade
dramatizada. Dessa vez, não apenas se discutiu a violência institucional, mas
experimentou-se alternativas de enfrentamento. A entrada em cena de Fernanda,
doutoranda da Faculdade de Educação da UnB, desencadeou um movimento de
insurgência: ela convocou aliados para denunciar e confrontar as imposições
injustas da diretora e da estrutura escolar, provocando uma energia de
mobilização que ultrapassou o palco e ganhou corpo no gesto do público, que se
levantou e se colocou ao lado da personagem.
O
palco tornou-se, assim, território de reinvenção política, no qual opressões
racializadas, classistas e autoritárias puderam ser criticamente tensionadas e
reinterpretadas. A cena, produzida no âmbito da disciplina Pedagogia do Teatro
do curso de Licenciatura em Educação do Campo (UnB - Planaltina/DF), ministrada
pelo professor Rafael Villas Bôas, com colaboração do doutorando Pedro Ribeiro
(lecionando conjuntamente a disciplina ao cursar Prática Docente com seu orientador),
funcionou como ato de afirmação da cultura Kalunga e como exercício pedagógico
de emancipação, reafirmando o Teatro do Oprimido como prática estética capaz de
transformar espectadores em sujeitos coletivos de ação.
Por
Dhenise Galvão, doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília
A peça Plataforma cria um
espaço onde diferentes tempos do trabalho feminino se tocam sem pedir licença.
As figuras das operárias da revolução industrial aparecem quase costuradas às
trabalhadoras da era digital. A cena funciona como uma dobra. Passado e
presente se enfrentam e se reconhecem. Nada vem organizado em linha reta. A
narrativa escapa, volta, comenta a si mesma e revela suas engrenagens. A
sensação de distanciamento, o modo como as atrizes nomeiam suas ações e a
circulação entre ficção e realidade aproximam a peça da proposta brechtiana,
algo que para mim ficou evidente ao longo de toda a encenação.
O espetáculo me trouxe
outras associações pessoais. Em vários momentos pensei no filme “Dançando no
Escuro”, de Lars von Trier. Talvez pelos gestos exaustos das personagens,
talvez pelo peso industrial que repousa sobre tudo. Talvez simplesmente porque
se trata de mulheres atravessadas por sistemas que exploram até o limite. O
figurino sustenta essa aspereza. Ele fala de desgaste. De repetição. De
sobrevivência.
Há um ponto decisivo na
forma como a peça articula cena e tecnologia. O celular aparece como dispositivo
dramatúrgico que molda ações, produz vigilância e condiciona a presença das
personagens. Ele opera como mais uma máquina que observa enquanto observamos,
instaurando um circuito contínuo de exposição, coleta de imagens e dependência
que espelha a lógica tecnológica da vida contemporânea. Nada ali sugere
neutralidade, o aparelho estrutura tanto a relação entre as intérpretes quanto
o modo como o público é convidado a perceber aquela vigilância. A ideia que
atravessa a obra está no “medo de não ser visível, o risco de desaparecer”, a
vigilância que se mistura à economia e o patrão transformado em câmera e
algoritmo.
Outra coisa marcou a
experiência. A plateia quase inteira permaneceu atenta. Quase ninguém mexia no
celular, o que é raro hoje. O assunto exposto no palco parecia impedir aquela
fuga rápida para a tela. Eu mesma só cheguei a ver uma pessoa olhando o
aparelho. Foi curioso perceber esse silêncio digital num espetáculo que fala
justamente da captura da nossa atenção.
A peça não se propõe a uma
narrativa pessoal, no entanto pequenas fissuras deixam ver vidas que tentam
existir enquanto trabalham. Uma das personagens fala da filha. A chuva cai
dentro e fora da cena. Há uma vibração emocional que atravessa tudo isso e que
se mistura às questões mais amplas do trabalho. Mesmo sem contar uma história
íntima, o espetáculo convoca o público a lembrar que todo corpo em cena é um
corpo que trabalha, cansa, insiste. Saí com essa sensação. A de que todas nós
somos arrastadas pela engrenagem. Mesmo quando não estamos numa fábrica. Mesmo
quando pensamos que escapamos.
“Plataforma” não oferece
conforto. Ela cutuca, mostra. Insiste para que a gente veja o que está diante
dos olhos e o que escapa. É um trabalho que revela a paisagem invisível do
cotidiano laboral das mulheres. Expõe os atravessamentos históricos. Faz a
plateia pensar e sentir. E isso ficou evidente no interesse total do público
durante a apresentação. A recepção foi de escuta, de concentração e de impacto.
Um silêncio atento que dizia muito sobre a força do que estava sendo
compartilhado ali.
Peça “Plataforma” da Cia Estudo de Cena. Fotos de Luara Dal Chiavon
“A Aurora”, da Cia. Burlesca
Por Dhenise Galvão
No Distrito Federal, a formação de
plateia teatral ainda enfrenta resistências culturais, com parte do público
associando o teatro a algo distante ou excessivamente comercial. Nesse cenário,
espetáculos como “A Aurora”, da Cia. Burlesca, cumprem um papel essencial, ao
oferecer uma experiência cênica acessível, politicamente engajada e
esteticamente sólida, capaz de aproximar novos espectadores, inclusive crianças
e jovens, de temas urgentes da realidade brasileira.
Apresentado na 7ª Mostra Terra em Cena e
na Tela, evento dedicado a obras que abordam o campo, os trabalhadores rurais,
quilombolas, assentamentos e lutas agrárias, o monólogo “A Aurora” tem
interpretação de Julie Wetzel e direção de Patrícia Barros e Lyvian Sena. A
peça parte do livro “A Revolução de Anita”, de Shirley Langer, e constrói, a
partir do relato de uma professora do campo, uma reflexão profunda sobre o
direito à educação.
Julie Wetzel alterna cenas com fluidez
notável, transitando entre momentos de leveza e tensão dramática. O espetáculo
inicia com uma interação direta com a plateia, questionando as profissões dos
sonhos de cada um, respostas que revelam aspirações comuns, como professor,
bombeiro ou cantor, para, em seguida, confrontar essas projeções com a
realidade de grande parte da população brasileira, para quem o acesso à
educação é limitado e o futuro parece predeterminado.
No centro da narrativa está o poder
transformador da leitura, do letramento e da educação popular como instrumentos
de emancipação individual e coletiva. A atriz sustenta o monólogo com presença
cênica intensa, valendo-se de um cenário minimalista e funcional, uma mesa que
se transforma em vários espaços domésticos e simbólicos, abrindo compartimentos
para livros e objetos que ampliam o universo da personagem.
Entre os momentos de maior impacto está
a sequência ritmada com batidas no peito, acompanhando a canção “Front de
guerra”, de Alessandra Leão, que reforça a ideia de uma luta cotidiana e
coletiva pela dignidade e pelo conhecimento. Embora apresente um trecho mais
expositivo ao detalhar a inspiração da história, a peça mantém o envolvimento
do público até o final, quando se abre para um debate rico, no qual a atriz compartilhou
sua recente experiência de apresentar o trabalho em Cuba.
Um diferencial importante é o material
distribuído ao final, o folder com a “Biblioteca da Aurora”, uma compilação
cuidadosa de referências bibliográficas, reportagens, documentários, artigos
acadêmicos e links organizados por temas. O documento abrange educação popular,
o método cubano “Yo, sí puedo”, o legado de Paulo Freire na alfabetização de
adultos, experiências do MST, casos de censura literária no Brasil e reflexões
sobre o direito à literatura, oferecendo ao espectador ferramentas concretas
para aprofundar os debates propostos em cena.
“A Aurora” exemplifica o potencial do
teatro local como espaço de resistência cultural e formação crítica. Ao aliar
rigor artístico, pesquisa histórica e compromisso social, o espetáculo não
apenas entretém, mas provoca reflexões necessárias sobre desigualdade, acesso
ao conhecimento e transformação social. Uma obra potente, que reforça a
importância de investir em produções que valorizem a inteligência e a
sensibilidade do público.
Parabéns à Cia. Burlesca, à equipe e
especialmente a Julie Wetzel por um trabalho consistente, acolhedor e
profundamente necessário.